segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Educação Libertária: experiências em uma comunidade no Rio Grande do Sul


Galpão da Vila Pontilhão, hoje reassentamento Moradas do Carvalho

Os modelos teóricos acerca da pedagogia libertária são muito variados e algumas vezes opostos entre si. As teorias vão desde a defesa de um neutralismo pedagógico, proposto por Ricardo Mella Cea (1861-1925), até modelos como o de Francisco Ferrer (1859- 1909) que defendem a educação de caráter sociopolítico, ou seja, educar para o compromisso da transformação da sociedade. Nesse sentido, pensamos que a neutralidade não seria viável (e tampouco positiva), e que sim, a educação deve ser encarada como uma prática sociopolítica, ou seja, pautada a partir das necessidades de determinado contexto. Quando consideramos que a prática pedagógica não é isenta de ideologia não significa que o educador deva fazer discurso ideológico para as crianças. No entanto as ideologias carregam valores e cabe ao educador escolher, se é o seu propósito fortalecer valores que contribuam para a transformação da sociedade ou os que contribuem para perpetuá-la.
Nossos objetivos, enquanto “educadoras”, é a construção de um espaço de compartilhamento de conhecimentos, de práticas solidárias, de problematização, de construções de acordos e de ações sobre a realidade. Um espaço comunitário e permanente, e por isso, um espaço de resistência neste contexto em que vivemos de individualismo, organizações populares de curta duração, falta de enraizamento, campanhas sobre temas variados que não resistem ao próximo tema da moda.
A Escola Comunitária Resistência Popular surge em 2005, na então chamada vila Pontilhão, em Gravataí - RS. A vila tratava-se de uma ocupação urbana de condições muito precarizadas onde construiu-se uma história de lutas e resistência por água, luz, trabalho, reconhecimento dos catadores de materiais recicláveis e moradia. Neste local havia um espaço coletivo, um galpão, onde desenvolveu-se, ao longo dos anos, a primeira Associação de Catadores de Gravataí, o primeiro Comitê de Resistência Popular, o Comitê Vale do Gravataí do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), a Escolinha da Resistência e muitas outras atividades. A Escolinha surge com a preocupação de oferecer um espaço de educação informal para crianças e adolescentes, promovida por militantes destes movimentos sociais e com o apoio de trabalhadores da educação e de agentes culturais do teatro, hip hop, capoeira, entre outros que foram somando-se no processo. A educação se constitui em uma preocupação relevante nesses movimentos sociais que visam o protagonismo popular, e portanto acreditam que desde a criança, até os adultos, é necessário fomentar a adesão consciente aos processos coletivos de organização e ação através da conscientização, do debate, da formação horizontal, e não, como praticado por tendências políticas de cunho autoritário, a adesão alienada e baseada na obediência às ordens de dirigentes.
Em 2009 parte do terreno onde estava a vila foi comprado pela empresa de condomínios Alphaville. Após muita pressão, a comunidade conseguiu ser reassentada em um local próximo, com a construção das casas como contrapartida da empresa, e com espaços para reconstrução do galpão (apenas as colunas e o telhado) entre outros espaços sociais. O reassentamento ocorreu em 2011 para o condomínio Moradas do Carvalho. Em 2013 retomou-se a realização da Escolinha em espaços improvisados e ao ar livre. Atualmente as aulas desenvolvidas são de Horta Comunitária (com enfoques transversais diversos como educação socioambiental, educação alimentar e saúde, ciências, matemática, português…).
Diaz (1977) coloca que toda a comunidade tem o direito e o dever de participar cada vez mais no processo educativo comunitário. Assim, acreditamos que a comunidade pode e deve ser um espaço de educação, assim como a família e a escola, na qual as crianças podem aprender através do meio ambiente em que vivem e refletir criticamente sobre as dificuldades e lutas comuns entre os vizinhos. Importante reflexão também faz o educador mineiro Tião Rocha, fundador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, quando diz que  "Como educador eu não quero tirar os meninos da rua, eu quero mudar a rua...se é nelas que nos formamos como cidadãos e como povo, por que privar os meninos disto..."; "Nós, adultos, deveríamos ser “pais e responsáveis “ por todas as crianças, independentes se nascidas da  gente ou não ...".
As crianças da periferia possuem um rico conhecimento do lugar em que vivem, relacionar o seu conhecimento empírico com os conteúdos teóricos de diferentes disciplinas torna o aprendizado muito mais palpável do que aquele obtido nas salas de aulas com base em temas abstratos. Em uma das aulas ao ar livre, de Horta, estávamos discutindo sobre semeadura. Pedimos às crianças que identificassem, em meio à vegetação espontânea que cresce pelo terreno, sementes. O menino que mais enfrenta dificuldades na escola foi o primeiro a encontrar. Mesmo assim, enfrentou o desdém de outras crianças que tiram boas notas na escola, surpresas quando falamos, sim, o colega está correto, isto é uma semente!
O lugar em que se vive é ideal para trabalhar a teoria e a prática de forma interdisciplinar. Segundo Orr em Alfabetização Ecológica (2006):

“Os lugares são laboratórios de diversidade e complexidade, misturando as funções sociais e os processos naturais. O lugar tem uma história humana e um passado geológico; ele é parte de um ecossistema com uma variedade de microssistemas, é uma paisagem com uma flora e uma fauna particulares. Os seus habitantes fazem parte de uma ordem social, econômica e política (...)”.  

Com este enfoque, um dos conteúdos principais que temos trabalhado é a Educação Socioambiental, ou Educação Ambiental Crítica que entende o ser humano e suas relações sociais como parte do meio ambiente e problematiza as questões ambientais dentro de um entendimento de que “não estamos todos no mesmo barco”, estamos em uma sociedade de classes onde as classes dominantes usufruem  da maior parte dos recursos naturais, e por outro lado, são os oprimidos que sofrem a maior parte dos desastres ecológicos advindos de um modelo de sociedade capitalista. As pessoas costumam apontar os moradores das vilas como grandes degradadores do meio ambiente. Ao lado da vila Pontilhão, havia um banhado, área úmida protegida pela legislação ambiental do estado do Rio Grande do Sul, frequentado por diversas espécies de pássaros, ratões do banhado, entre outros animais. Os esgotos das casas iam para este banhado, alguns colocavam lixo, outros moradores eventualmente capturavam ou caçavam os animais. Sim, são danos ambientais, porém o banhado estava ali. Mas depois que a empresa comprou o terreno para fazer o condomínio, cortou diversas árvores, aterrou quase todo o banhado, deixando apenas um pedacinho (onde já não se vêem os pássaros). Em cima de uma grossa camada de aterro, fez um belo paisagismo mesclando espécies exóticas com espécies nativas. Por mais que tenha plantado árvores para reparar o dano, não se consegue restituir aquele ecossistema especial que estava ali. Em 2 anos, o dano ambiental de uma empresa foi maior que aquele promovido pela vila que estava ali há mais de 20 anos. Em 2010 a comunidade sentiu as consequências da devastação ecológica. Sem árvores para fazer barreira aos ventos, qualquer tempestade era motivo de preocupação, pois a ventania destelhava as casas que estavam na parte mais alta, deixando várias famílias desabrigadas.
A sociedade capitalista impõe não apenas uma dominação econômica, política, mas também ideológica. A separação de homem e natureza, e a noção de que a natureza é um bem a ser consumido e explorado está em todas as classes sociais. As comunidades originárias, anteriores ao capitalismo, podem nos ensinar como enxergar novamente os seres humanos como filhos e filhas da natureza.
Na trajetória da Escolinha também tem tido espaço importante a cultura, trabalhando aspectos como expressão corporal, oral, gráfica, seja através do teatro, capoeira, música, pintura, fotografia. A arte é uma aliada da Educação Sociombiental, pois permite ao retratar a realidade em que se vive desde um outro ponto de vista, onde o distanciamento permite refletir sobre essa realidade de uma maneira diferente do que vivendo ela rotineiramente.
Em uma experiência que realizamos com fotografia, o banhado que nos referimos anteriormente foi retratado com toda a sua beleza, excluindo-se o lixo do fundo das casas. Ao mostrar para as crianças. elas nem reconheceram o lugar e comentaram como era bonito. Ao revelar que aquele lugar estava bem ali, do lado, foi grande a surpresa! Neste sentido, a exemplo do que escreveu Pamela Michael  no artigo de “Alfabetização Ecológica” (2006):

“Como a educação ambiental, e grande parte da educação em geral, não consegue muitas vezes reconhecer o papel crucial das emoções no processo de aprendizagem, as atividades que tanto informam a mente quanto envolvem o coração provaram-se uma combinação poderosa e eficaz. Nós logo começamos a definir a nossa missão como sendo a de ‘ajudar as crianças a se apaixonar pelo planeta Terra’. Como as pessoas protegem aquilo que amam, esta é uma receita eficaz de preservação e esperamos que, por fim, também de afinidade.”

Relatando outra situação, em um contexto em que grande parte das crianças eram filhas de catadores de materiais recicláveis, e eram tachadas na escola negativamente como “carroceiras” ou “lixeiras”, construir uma esquete de teatro sobre a história de uma família de catadores permitiu que as crianças olhassem aquela realidade conhecida e percebessem uma identidade positiva nela, a importância destes trabalhadores, seus sacrifícios pra sustentar suas famílias, sua importância para o meio ambiente. A esquete foi apresentada e elogiada em diferentes ambientes e públicos, fortalecendo a auto-estima das crianças.
As escolas tem dificuldade em entender a identidade local das crianças que está educando. Seria muito proveitoso se trabalhadores da educação tivessem um tempo na sua carga horária pra conhecer a casa das crianças e entender o seu contexto. Ver por exemplo, que tem crianças que não têm um lugar pra estudar dentro de casa, que não tem uma mesa, ou mesmo uma cama só sua, e muito menos uma estante de livros. Recentemente uma criança durante a aula da escolinha disse “a professora está louca, deu um tema de casa que a gente precisa consultar no dicionário. Ela não sabe que aqui onde a gente mora ninguém tem dicionário”. “Claro que tem” respondemos, “aqui na escolinha temos dicionário”. Infelizmente enquanto não for reconstruído o galpão não poderemos trazer a biblioteca que tínhamos, os livros estão provisoriamente armazenado em um galpão de catadores em outra comunidade. Mas guardamos alguns livros pra estas situações. Este comentário é sintomático. Nossas crianças são crianças da classe oprimida, filhos de trabalhadores em sua maior parte precarizados, com baixa escolaridade, moradores da periferia urbana, carente de serviços públicos de qualidade tal como transporte, educação, saúde, cultura, lazer e transporte, sob a influência do tráfico de drogas, da violência, etc. Todos estes elementos exercem uma influência nos indivíduos que precisam ser considerados, debatidos, problematizados de forma crítica, de forma a reforçar aquilo que é positivo nessa identidade coletiva e sempre que possível  construir ações que combatam aquilo que precisa ser transformado.
Outra questão, que carrega aspectos do meio, da história pessoal e de inúmeros fatores que não ousamos aqui descrever, é a formação da identidade individual. Nossa prática educativa busca descobrir e fortalecer em cada indivíduo as suas potencialidades e como ele pode contribuir com o coletivo, para fortalecer, por consequência, seu próprio desenvolvimento. Por fim um terceiro aspecto do tema da identidade é, de forma mais ampla, a identidade popular, a história dos oprimidos, dos negros, índios, dos imigrantes pobres que lutaram e obtiveram as conquistas sociais que temos atualmente, e que deve ser conteúdo de formação de adultos e crianças. A ludicidade é importante, porém, se as crianças curtem histórias de super-heróis imaginários em contextos tão diferentes dos que vivemos, porque não escutarem as histórias dos heróis de verdade do povo brasileiro, tal como Roseli Nunes, Zumbi dos Palmares, ou Sepé Tiaraju…
Estes são conteúdos que consideramos importantes em um contexto de educação popular e libertária, porém mais que conteúdos prezamos por uma educação que fortaleçam princípios e valores, que combatam tudo aquilo que julgamos reprodutor do sistema capitalismo. Citamos entre estes princípios:

·                                             Ajuda mútua: O capitalismo impõe o individualismo, a competitividade, onde para se dar bem cabe passar por cima dos outros. Kropotkin já argumentava, e contrariando o darwinismo social, que as espécies que melhor se adaptaram não foram aquelas que competiram melhor, mas aquelas que desenvolveram formas de ajuda mútua. Na periferia vemos algumas histórias de superação individual, mas em geral as soluções para os problemas comuns só se dão em ações coletivas, mesmo que haja graus diferentes de participação, afinal a crise de participação aflige a maior parte das organizações sociais, porém legitimadas no coletivo, por acordos comuns.  Mesmo propondo trabalhos coletivos, como uma horta, as crianças tendem a compartimentar o fruto do esforço coletivo em ações individuais “esta planta eu que plantei”, “essa ferramenta é minha”. Inclusive entre nós educadores é muito fácil cair nestas armadilhas “o meu projeto de educação”, “a minha aula” “a minha idéia”... Por isso a discussão sobre a ajuda mútua, solidariedade e coletividade devem permear toda a prática, e estar em constante avaliação após toda atividade.

·                                             Respeito: O respeito deve ser uma das regras coletivas da Escolinha. Respeitar as demais crianças, os adultos, o espaço coletivo, é a base para qualquer relacionamento. Aprender a conviver e respeitar a diversidade de maneiras de ser, idades, origens, etnias, gostos culturais, gêneros, orientações sexuais, religiões é um combate diário. Para haver respeito, sem imposição da força, é necessário construir uma relação de afeto e firmeza para cobrar os acordos coletivos. Ensinar a respeitar sobretudo a natureza em suas diversas formas, não como um bem a ser usufruído, mas como um ente vivo e sagrado.

·                                             Liberdade e auto-disciplina:  Citando a cartilha para educadores da Resistência Popular “Já dizia o lutador anarquista M. Bakunin que é preciso educar “da liberdade à autoridade”. Isso quer dizer que as crianças precisam de limites, de regras, aprender o que é certo e o que é errado, precisam da autoridade de um adulto. É possível construir as regras das aulas junto com as crianças, e fazê-las refletir sobre elas constantemente. Sempre que alguém faltar com alguma regra, pode-se parar tudo e fazer uma discussão sobre o que aconteceu. (...) Dessa forma, e só dessa forma, se educa para a liberdade, para que sejam adultos seguros de si, com auto-disciplina, que sabem o que querem, e não adultos mimados e fúteis (falta de limites na infância) ou reprimidos, violentos e frustrados (limites demais, punições demais).

·                                             Responsabilidade: Na nossa escola as crianças vêm porque tem vontade, elas não são obrigadas a vir. Porém, só quem participa pode usufruir dos seus frutos. Assim, para um passeio que a Escolinha consiga, só irão aqueles que participam. A colheita da horta, só será dividida pra quem nela trabalhou. Uma festinha só acontece se as crianças e adolescentes ajudam a organizá-la. Nós não somos assistencialistas, nós buscamos incentivar que as pessoas lutem pelo que querem, e mesmo as crianças precisam ter suas responsabilidades, saber que as conquistas vêm com esforço, há  momento importante da brincadeira mas também tem as tarefas difíceis. Muitas vezes vemos, na vila, pessoas até bem intencionadas, que vêm de fora trazer doações para a comunidade. E aí vemos roupas, que foram dadas, sendo queimadas após o primeiro uso. Brinquedos, quebrados no primeiro dia, atirados pelo campo. Cestas básicas, ajudando a sustentar traficantes. Aquilo que vem sem esforço não é valorizado. Vemos algumas propostas de educação alternativa que parecem bem interessantes, mas dão a entender que todo o processo educativo deve ser prazeroso. É lindo que seja, mas há coisas que exigem esforço para serem interpretadas, entendidas, executadas, em qualquer área do conhecimento.

·                                             Auto-organização: Dentro de um tema gerador ou de um projeto previamente escolhido, no caso, atualmente, temos o da Horta Comunitária, apresentamos a proposta de aula planejada. Há um momento de discussão sobre como as atividades serão feitas e no final há um momento de avaliação. Estes espaços reflexivos permitem, a nós e às crianças, estarmos frequentemente praticando a  auto-análise, o que é essencial para o planejamento de futuras atividades. As crianças trazem importantes contribuições, sugestões e observações. Periodicamente realizamos na Escolinha uma Assembléia das Crianças, reunindo todos, e para avaliar um período mais longo. Na assembléia deve haver  pelo menos um coordenador (para garantir a discussão da pauta), alguém para fazer inscrições, e um relator. Assim elas aprendem a discutir em coletivo, com democracia de base, habilidade tão importante para as organizações populares.

·                                             Honestidade: Como já foi mencionando, o capitalismo torna naturalizado que as pessoas busquem tirar vantagem em tudo e se matem por migalhas. A corrupção permeia todas as classes sociais, e as crianças não são isentas dela. Muitas coisas da escolinha foram roubadas por gente da própria comunidade, não podemos idealizar que o “mundo novo” está construído porque estamos fazendo uma proposta de educação libertária, estamos em plena guerra, combatendo valores capitalistas defendidos a unhas e dentes até pelos setores mais prejudicados por este sistema. As drogas entraram com tudo para fragmentar o já remendado tecido social das comunidades, não é a toa que têm sido usadas para contenção de processos de empoderamento popular (caso dos Panteras Negras, nos EUA), jogando pobres contra pobres.
Nossa proposta não está pronta nem acabada, seguimos em permanente reconstrução e reformulação das nossas práticas e concepções teóricas por uma educação libertária atualizada ao nosso tempo e lugar, que por si só não transforma a sociedade, mas é uma necessidade fundamental para organizações e movimentos que por isto almejem.

Por: Roberta S. e Débora B.